Como a inflação criou Hitler


De inflação, o Brasil entende. Mesmo assim é difícil até para a gente imaginar o que aconteceu na Alemanha do começo do século 20. Entre 1914 e 1923, os preços lá subiram 143 trilhões por cento. Seria como se um chope de R$ 5 passasse a custar R$ 12 trilhões em 2022. Para ter uma ideia do que isso significa, tenha em mente que há 12 trilhões de segundos, os Neandertais começavam as dar seus primeiros passos (dá 378.552 anos). E o Homo sapiens não estava nem no papel. Nossa espécie existe há 6 trilhões de segundos. Nunca subestime o trilhão.

Bom, os salários dos alemães também eram trilionários. Mas não adiantava nada. No círculo vicioso da inflação, os preços sempre sobem antes dos salários (numa economia saudável acontece o oposto). Hitler, que tinha 34 anos em 1923 e ainda era só um agitador de rua, discursava contra o absurdo de a Alemanha ter “bilionários miseráveis”. Para o sujeito, a culpa era dos comunistas, dos judeus, dos capitalistas, dos judeus, da frouxidão do governo com os judeus. E dos judeus também.

Suposta imagem de Hitler, em 1914, em meio às comemorações pelo início da Primeira Guerra.

Mas o problema estava no lugar de sempre: na cabeça de quem imprime aquilo que a gente tem na carteira. No caso, os responsáveis pelo Reichsbank, o Banco Central de lá. A Alemanha tinha entrado na Primeira Guerra Mundial e precisava de mais dinheiro circulando para manter a economia viva, já que todo país em conflito precisa aumentar sua produção. O governo, via Reichsbank, injetou grana na praça, concedendo empréstimos a rodo, a juros baixíssimos, de 5% ao ano. Conseguir o dinheiro não era problema para o Banco Central. Era só ligar as impressoras de papel-moeda e mandar ver.

No começo deu certo. O Reichsbank inundou a economia alemã de dinheiro novo, mas a produção respondeu à altura. Ou seja, o governo imprimia papel-moeda para comprar aço a fim de fabricar armas, por exemplo, e as siderúrgicas alemãs produziram quase tanto aço a mais quanto a quantidade de dinheiro extra que foi impressa. Assim deu para segurar as pontas. O resultado foi uma inflação relativamente baixa ao longo da Primeira Guerra, uma média de 14% ao ano entre 1914 e 1918.

Na prática, os preços dobraram entre o começo e o fim da guerra. Era do jogo. O problema foi depois.
Quando o conflito acabou, com a Alemanha derrotada, a capacidade de produção do país foi parar na UTI. 

Eles tinham perdido 10% da população, 15% do território e todas as suas colônias na África e na Ásia. A extração de carvão caiu 30%; e a de minério de ferro, 75%. Para piorar, os Aliados exigiram 100 mil toneladas de ouro a título de reparação pelos danos da guerra – uma soma que hoje estaria na casa dos trilhões de dólares. Por mais que eles parcelassem, seria dureza – economistas respeitados da época, como o inglês John Maynard Keynes, achavam o valor completamente impagável, mas a imposição foi feita mesmo assim.

Agora a economia estava asfixiada. E o Reichsbank decidiu bombear oxigênio na forma de dinheiro. Continuou com sua política de emprestar a 5% ao ano. Aí voltou aquela equação do mal: pouca produção + muita moeda = inflação fora do controle. Em 1921, tudo estava dez vezes mais caro do que no fim da Primeira Guerra. Mas os salários, que sempre ficam para trás nessas horas, tinham subido nove vezes. O dinheiro comprava 10% menos que antes.

Esse foi o primeiro degrau.

Meses depois, veio o segundo: tudo o que custava 100 dinheiros em 1921 valia 2 mil dinheiros em 1922 – 1.900% de inflação numa paulada só. Desnecessário dizer que a renda da população não acompanhou. De um ano para outro, o poder de compra caiu pela metade. Mas os preços mal tinham começado a aumentar.
Entre a virada do ano e junho de 1923, a inflação foi de quase 1.000% ao mês. O poder de compra começava a se aproximar de zero. Uma piada da época tirava sarro da situação: “Um cara levou um carrinho de mão cheio de dinheiro para comprar pão. Aí chegou um ladrão, jogou o dinheiro fora e fugiu com o carrinho de mão!”.

Os sindicatos exigiram que os salários dos trabalhadores fossem corrigidos pela inflação, para acabar com as perdas. Conseguiram. Mas foi aí que as coisas degringolaram de vez. A correção monetária retroalimentou os aumentos de preços. Todo mundo sabia que todo mundo teria mais dinheiro no fim do mês, então todo mundo tentava aumentar os preços antes de todo mundo.

E todo mundo se dava mal.

No fim de 1923, um pãozinho de 50 gramas saía por 21 bilhões de marcos; uma passagem de bonde, 150 bilhões; um jornal, 200 bilhões. As impressoras do Banco Central trabalhavam 24 horas por dia para atender à demanda por dinheiro. Mas elas não davam conta. Passaram a fazer notas de bilhões de marcos, de centenas de bilhões e até a de 100 mil bilhões. Não adiantou. Então passaram a alugar impressoras particulares, de donos de jornais, por exemplo, para imprimir mais dinheiro.

E nem assim dava.

No dia 25 de outubro de 1923, por exemplo, o Banco Central produziu 120 mil trilhões de marcos em papel-moeda. Mas a demanda do sistema financeiro tinha sido de 1 quintilhão de marcos. O Reichsbank pediu desculpas e prometeu aumentar a tiragem de dinheiro o mais rápido possível.
Mesmo assim, ladrões de carrinhos de mão à parte, vários setores da economia resistiram bem. A indústria automobilística, maior símbolo da economia alemã tanto lá atrás como agora, organizou mais uma edição do Salão do Automóvel de Berlim normalmente, com a Mercedes e a Audi expondo seus modelos novos para 1924, como o bonitão aqui:


Àquela altura, o poder de compra do país tinha caído para 20% do que era antes da Primeira Guerra. Mas, para quem bebia marcos alemães direto da torneira do Reichsbank, aconteceu o oposto. Era só uma elite de empresários com acesso direto aos empréstimos de graça, mas, pelo menos, eles impulsionavam a economia em torno deles – uma desigualdade moralmente injustificável, mas ainda assim melhor para o país do que se não houvesse atividade econômica alguma.

O grupo que mais ganhava entre a elite era o dos exportadores. Do ponto de vista desse pessoal, quanto pior para a moeda, melhor para eles. É aquela lógica do câmbio que a gente acabou de ver. A inflação faz o valor das moedas estrangeiras subir com mais velocidade que os preços internos; e mais importante, numa economia inflacionada, a mera posse de moeda estrangeira costuma ser o melhor investimento. A procura por elas aumenta, e a cotação sobe mais ainda.

Um exemplo claro: entre outubro e novembro de 1923 a média dos preços na Alemanha aumentou 103 vezes. Dez mil por cento, para variar. No mesmo mês, o dólar aumentou 170 vezes. Uma nota de US$ 1,00 pulou de 25 bilhões de marcos para 4,2 trilhões. É aí que a porca torce o rabo: do ponto de vista de quem vivia nos EUA (ou em qualquer outro país com moeda forte), os preços na Alemanha não estavam subindo. Não. Estavam era despencando.

Só essa desvalorização em relação ao dólar que você viu aqui significava que o preço de qualquer produto alemão, do carvão aos Audis e Mercedes da época, tinha caído pela metade em um mês. Aí não tem erro: os estrangeiros vêm comprar mesmo, e os exportadores se dão muito, muito bem. Mas quem não pegou essa bocada não estava nada contente. Entre esses excluídos estavam os 3 mil membros do Partido Nacional-Socialista, também conhecido pela abreviação de Nationalsozialistische: Nazi.


Em novembro de 1923, a gangue dos nazistas invadiu uma choperia em Munique. Havia membros do governo reunidos ali. Os nazistas entraram, colocaram seus revólveres na cara deles, e Hitler subiu na mesa para avisar que estava tomando posse do lugar. Não da cervejaria, mas da Alemanha inteira.

O evento passaria para a história como o Putsch da Cervejaria, o golpe de Estado do chope. Hitler sairia do bar em marcha pelas ruas de Munique como o novo chefe de Estado alemão. E quem não gostasse da ideia que lidasse com seus cupinchas armados.

Hitler já do lado de fora da cervejaria, em 1923

Mas não foi daquela vez. A polícia de Munique lidou com os tais sujeitos armados, matou 16 deles e prendeu Hitler. O problema é que a prisão do líder fortaleceria o partido. Meses depois, os nazistas conseguiriam suas primeiras cadeiras no Parlamento alemão, amealhando 2 milhões de votos. Era o primeiro passo para uma outra tragédia: a pior dos últimos 6 trilhões de segundos.

Fonte: Superinteressante por Alexandre Versignassi