Dali, do alto de sua casa minúscula, suspensa, entupida de
papéis e sombras, roupas e móveis, sonhos e esperanças, achados e perdidos, ele
olha a gente que caminha lá embaixo. Entre um edifício e outro, homens e
mulheres atravessam a avenida correndo na frente dos carros, as bolsas a
tiracolo, o coração na boca, os projetos de vida parcelados a perder de vista.
Seu olhar passeia pela rua como quem agradece a Deus pela
cor azul e a jabuticaba, corre em ziguezague, pisa nas poças, sobe nas árvores,
pula por sobre os latões de lixo. Seus olhos destemidos entram e saem, vão e
voltam, fazem e acontecem feito dois pistoleiros gêmeos do velho oeste,
corajosos, incansáveis. De repente, ele para o olhar ofegante sobre um pai
amoroso que joga bola com o filho pequeno, e aquele amor operário, cuidador,
sublime e verdadeiro lhe espeta a membrana suave que envolve a alma. Até
perfurá-la profundamente.
Agora, a ele só resta ver vazar-lhe pelo furo o conjunto de
suas lembranças e sonhos, suas faltas e seus acertos, seus amores, suas
saudades, suas dúvidas e suas dívidas. Um a um, vê surgirem lá de dentro seus
pesares e alívios, sua vergonhas, seus orgulhos. Enfurecida, forte e resoluta,
a corrente de sentimentos represados alarga o furo, rompe o dique e inunda o
mundo inteiro que vai até onde a vista alcança.
Enquanto sente a alma esvaziar aos poucos, ele espreita lá
embaixo os cachorros em suas coleiras, dispensando suas misérias na calçada sob
o olhar dissimulado de seus donos prontos a esquecer a própria sujeira para
trás.
Olhando os catadores de papel e sucata, as carroças repletas
de entulho, ele pensa em seu próprio lixo. Observa suas lembranças ressentidas
caindo de suas gavetas, seus rancores liberados, suas inseguranças, sua
incapacidade de dizer tudo, seus pequenos desastres domésticos, sua vergonha na
cara. Sua dolorosa dificuldade de aceitar o que é pouco e raso e pequeno.
E assim, com os olhos ora na vida que passa lá embaixo, ora
em seu mundo que lhe escapa liquefeito formando uma imensa poça no chão, ele
pensa naqueles que partem sem avisar. Pensa em todos eles, relembra seus
rostos, resgata suas vozes, restaura sua importância. E se dá conta do quanto
todos eles sempre estiveram ali, impregnados no conteúdo simples de sua alma.
Olhando a rua e ouvindo a vida, ele pensa nos que já foram,
nos que estão e nos que ainda virão. E sonha com uma linda menina de Aquário
que ora existe, ora não. Em pensamento, diz seu nome sonoro como um canto e
acha engraçado seu apelido. A moça linda que mora em outra cidade e sorri
apertando os olhos e o empurra para a vida, como criança que brinca de assoprar
um fiapo de algodão para o vento.
E quando toda a sua alma se esvazia, ele olha a rua lá
embaixo e se sente leve, e se vê livre.
Ele, o velho pássaro negro que passara a vida preso na
gaiola apertada de uma varanda ridícula olhando a vida lá fora, do alto de sua
casa minúscula, suspensa e entupida de papéis e sombras, roupas e móveis,
sonhos e esperanças, achados e perdidos. Ele agora está livre de olhar o mundo
de dentro das suas grades. Livre para estar com aqueles que caminham lá
embaixo. Livre para esperar a menina de Aquário que vive em outra terra. Ele
agora está livre. Fly, blackbird. Fly.
Para Nelson Mandela.
Por: André
J. Gomes
Fonte: Revista
Bula