Neste artigo, a escritora Lya Luft convoca as mulheres a
tratar melhor os homens. Isso mesmo. A ser mais cúmplices e menos cobradoras.
Antes de protestar, avalie com calma os argumentos dela .O texto é longo mas
vale a pena ler até o final.
No começo diziam que eu escrevia mais para mulheres (o que é
bobagem) e que minhas personagens femininas são mais fortes do que os homens
(idem). Rótulos são imprecisos e empobrecedores, mas o que se há de fazer.
Depois de Rio do Meio, de 1976, passaram a dizer que eu
defendia demais os homens. Na verdade nunca defendi nem me pediram que fizesse
isso. Eu apenas devo ter do masculino uma visão mais positiva do que, parece,
boa parte das mulheres. Tive um pai amigo, que desde criança me ensinou a
cuidar da minha dignidade, e dois companheiros que me respeitaram como ser
humano, empurrando-me para a frente e para cima.
No Rio, escrevi entre outras coisas que também os homens
sofrem de solidão - na medida da solidão (ou da infantilidade) de suas
mulheres; que também querem ser amados, ouvidos, olhados, não só criticados e
cobrados.
Em palestras afirmo (para horror de muitas) que nós,
mulheres, também sabemos ser muito chatas. Insatisfeitas, cobradoras, ásperas
ou lamuriosas, frívolas e agitadas: nem sempre companheiras, poucas vezes
cúmplices.
Está certo que andamos sobrecarregadas nesses tempos
modernos, vacilando entre competência e beleza (ah, os modelos absurdos e
impossíveis que permitimos que nos implantem nas belas cabeças...), correndo
entre filhos e patrão, cartão de crédito ou momentinho de ócio escutando aquela
música ou vendo aquele vídeo no sofá da sala em plena tarde. Sem que ninguém
nos chame com aquela voz grossa e fatigada: Ô, mãããe. Sem o fantasma de mãe,
tias ou avós, de mão na cintura, na soleira da porta da nossa culpa ancestral
nos criticando: "Mas como! A essa hora aí atirada sem fazer nada?"
Repito que sabemos ser chatas, implicantes, desassossegadas,
indiscretas e críticas. E deixamos sozinho o nosso homem, que bem ou mal é o
que está do nosso lado. Pois, se for ruim demais, por que ainda estamos com
ele? Filho pequeno não é desculpa para alguma grave omissão quanto à vida
pessoal ou carreira: mãe sombria ou patética não ajuda filho nenhum a crescer
com esperança e otimismo, necessários para não se tornar um revoltado ou apático
monstrinho.
Um amigo meu, tendo sido muito rico, estava falido, e sua
dor maior era ter de participar à mulher que ela não podia mais assinar um
chequezinho: todos sem fundos.
Depois desse desabafo dele, pensei no que teria sido sua
vida a dois, ela tratada como mais uma criança em casa, ignorando a trajetória,
possivelmente as vitórias e derrotas, medos e solidão do seu marido.
Não são só as mulheres que precisam falar e ser ouvidas: na
sua linguagem e no seu ritmo, que não são os nossos, se pudessem abrir o
coração (o que raramente fazem) muitos homens se queixariam de que ninguém os
escuta em casa. A mulher grudada nos filhos ou na televisão, no telefone com a
amiga; os filhos na rua, ou fechados no quarto; e com os amigos do bar ou do
escritório, os homens falam de futebol, mulher, carro, raramente de si mesmos e
de sua humanidade.
Assim inventei há pouco tempo o que seria um lamento dos
homens desejando que a mulher, amante ou namorada os acolhesse melhor:
Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o
que estiver fazendo - filho, panela ou computador - e venha me dar um beijo
como os de antigamente. Que, mesmo com o passar do tempo, os trabalhos, os
sofrimentos e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito que me encantou quando
a vi pela primeira vez. Que se estou cansado demais para fazer amor ela não
ironize nem diga que "até que durou muito" o meu desejo ou potência.
Que quando quero fazer amor ela não se recuse demasiadas vezes nem fique
impaciente ou rígida, mas cálida como foi anos atrás. Que ela não me humilhe
porque estou ficando calvo ou barrigudo nem comente nossa intimidade com as
amigas, como tantas mulheres fazem. Que jamais se permita comentar diante de
outros, nem de brincadeira, seja positiva ou negativa, o meu desempenho sexual.
Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem
não tem jeito pra isso ou que não sei segurar a cabecinha dele, mas me ensine o
que eu não souber. Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças, mas
sirva de ponte entre nós quando me distancio ou distraio demais. Que quando
preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou
a escute, como se silêncio fosse sinal de falta de amor. Que quando estou com
pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de
prover para minha família. Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda
hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo. Que não
se insinue com minha secretária ou colega para descobrir se tenho uma amante.
Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza, de
ternura, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou
censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz. Que
cuide um pouco de mim como minha parceira, mas não como se eu fosse um filho
desastrado e ela a mãe onipotente; que não me transforme em filho.
E que, se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho
demais ou a machuco consciente ou inconscientemente, ela saiba me chamar de
volta com aquela ternura que só nela eu descobri e desejei que não se perdesse
nunca, mas me contagiasse e me tornasse mais feliz, menos solitário e muito
mais humano.
Essa brincadeira séria me valeu protestos de algumas
mulheres, aplausos de outras e abraços de muitos de meus amigos homens. Alguém
(um homem) me escreveu dizendo que suspeitava de que o texto tivesse sido
escrito pelo meu "maridão". Respondi ao e-mail com outro informando
que só se fosse em sessão espírita, pois há muitos anos eu já enviuvara pela
segunda vez. E se eu dissesse que o pai de meus filhos, ilustre gramático e
lingüista, jamais escrevera uma linha de meus tantos livros, essa pessoa não
acreditaria também.
De modo que, sim, eu acho que não somos santas nem temos
obrigação de ser, mas bem que aqui e ali valeria a pena parar, olhar, escutar;
dentro de si, e ao lado, onde está aquele com quem afinal partilhamos a vida.
Temos escutado o que ele diz ou o que nos diz seu silêncio?
Temos ainda lembrado de agradar, elogiar, sorrir, fazer carinho ou estamos demais
ocupadas botando Botox na cara e passando horas na academia com medo de que o
tempo nos devore o que sobrou da nossa alma?
Ainda pensamos nele, nas suas necessidades, emoções, desejo,
frustrações, medo e fraquezas, como quando éramos namorados - ou estamos demais
distraídas com as amigas, o bingo, o carteado, a butique, o mais recente
mexerico sobre artistas de televisão ou sobre a vizinha? Não sei. Receio que
responder seja tão duro quanto perguntar.
Não acho que a gente deva ser boazinha, gueixa submissa ou
serviçal ressentida, menininha de voz fina gingando em saltos altíssimos pela
casa ou arrastando-se às 4 da tarde de robe e pantufas com cara de cachorro (vi
numa vitrine umas com orelhas!).
Importante seria não deixar que a poeira da banalidade abafasse
o que havia entre a gente de encantamento e magia, ainda que o namorado agora
seja um marido mais barrigudo, e menos cabeludo, de óculos, que chega em casa
cansado demais pra reparar no quanto estamos bonitas ou exaustas demais.
O bom seria que continuássemos amantes, sendo também amigos.
Pois amor é amizade com sensualidade: se não gosto do outro com seus defeitos e
qualidades, manias e até pequenas loucuras, como foi que o escolhi para viver
comigo numa casa, na mesma mesa, cama e talvez todo o tempo de minha
existência?
Acho que, sim, somos demasiadas vezes chatas, cobradoras,
secas, lamurientas, infantis e de um egoísmo retumbante. Embora gostemos de nos
apresentar como incompreendidas ou maltratadas, merecedoras de todas as
compensações imagináveis, é bom ponderar que a mulher-vítima e a mãe-mártir
inspiram culpa e aflição e perturbam toda uma família.
Melhor ser natural. Melhor ser generosa com limites, sem se
deixar explorar; melhor ser bem-humorada, porque alegria é muitas vezes a
última esperança de um velho amor. Melhor ainda, melhor mesmo, é abraçar, fazer
aquele carinho, olhar fundo no olho, e dizer alguma palavra antiga, esquecida
nas correrias cotidianas. O coração se renova com a mesma fagulha que, há dois
anos ou 20 ou até mais, fazia cada encontro uma emoção, e a gente sentia que
ali, sim, estava o que mais queríamos na vida. Resta saber o que fizemos com
aquela relação e como temos afinal lidado com esse homem que foi o objeto
máximo de nosso desejo e sonho.
Fonte: Cláudia/Abril