E eu fico me perguntando: até que ponto perdoar e esquecer é
uma alternativa possível?
Hannah Arendt – teórica política judia perseguida pelo nazismo – fala da
diferença entre perdoar e compreender. Para ela, perdoar é fazer o impossível:
é praticamente desfazer o que foi feito, mas sem eliminar a consciência de que
aquilo de fato ocorreu. Já compreender é entender que tal atitude é válida,
dadas as circunstâncias. Assim, ela mesma dizia perdoar o nazismo, mas nunca
compreendê-lo, pois compreender tamanha atrocidade seria reconhecer o mundo
onde o nazismo existe como aceitável.
Tanto compreender quanto perdoar são ferramentas de
crescimento e evolução pessoal, espiritual, filosófica, transcendental (escolha
aí o nome que mais lhe apetece), desde que sejam puxadas do nosso “cinto de
utilidades” na hora certa.
Perdoar não é fácil. Ou melhor! Perdoar não é difícil!
Difícil é chegar a esse estado de espírito que permite o perdão. Uma vez que se
chegue lá, é muito natural e faz mais bem a quem perdoa do que a quem é
perdoado. Alivia os pesos da alma, retira de nós uma bagagem que em nada nos
seria útil. E perdoar não é esquecer, porque quando perdoamos, a lembrança
continua conosco como aprendizado, mas não como mágoa.
Compreender é exercer a empatia no seu grau mais elevado e
ir além: é estar disposto a sair da zona de conforto e mudar o “ponto de observação”.
É calçar os sapatos do outro percebendo suas motivações e suas angústias. É
ganhar uma nova perspectiva – algo que só nos enriquece, mas que demanda um
esforço que quase ninguém está de fato disposto a fazer.
De qualquer forma, vejo tantas mulheres se esforçando para
compreender e perdoar toda sorte de atitudes vindas do amado da vez… Mas, a
mesma mulher, capaz de tamanha compaixão, não perde muito tempo tentando
compreender uma amiga, uma pessoa da família ou um colega de trabalho que pisou
na bola.
Mas o único risco que corremos ao fazer o esforço de TENTAR compreender um
amigo é o de abandonarmos um monte de bobagens que julgávamos imprescindíveis.
As relações familiares, em sua grande maioria, têm origem em um elo de
afetividade. Surgem de um enlaçamento amoroso. A essa realidade evidente por si
só cabe questionar, afinal, por que as relações afetivas migram para a
violência em números tão chocantes e surpreendentes? O mais intrigante é que
nem sempre é por necessidade de sustento ou por não terem condições de prover
sozinhas a própria existência que as mulheres se submetem, calam e não
denunciam as agressões de que são vítimas.
Por que as mulheres sofrem em silêncio? Medo, vergonha,
temor da incompreensão, sentimento de incapacidade, de impotência, tolerância à
submissão, desrespeito a si próprias? Mas essas são as causas da violência ou
são os motivos do silêncio?
O desejo do agressor é submeter à mulher à vontade própria,
é dominar a vítima, daí a necessidade de controlá-la. Para isso, busca destruir
sua auto-estima. As críticas constantes a fazem acreditar que tudo que faz é
errado, de nada entende, não sabe se vestir nem se comportar socialmente. É
induzida a acreditar que não sabe administrar a casa nem cuidar dos filhos. A
alegação de não ter um bom desempenho sexual leva ao afastamento da intimidade
e à ameaça de abandono.
O silêncio passa à indiferença e às reclamações,
reprimendas, reprovações. Depois vêm os castigos, as punições. Os gritos
transformam-se em empurrões, tapas, socos, pontapés, num crescer sem fim. As
agressões não se cingem à pessoa da vítima. O varão destrói seus objetos de
estimação, a envergonha em público, a humilha diante dos filhos. Sabe que eles
são o seu ponto fraco e os usa como massa de manobra, ameaçando maltratá-los.
Para dominar a mulher, procura isolá-la do mundo exterior,
afastando-a da família. Proíbe as amizades, denigre a imagem dos amigos. No
entanto, socialmente, o agressor é agradável, encantador. Em público se mostra
um belo companheiro, a não permitir que alguma referência a atitudes agressivas
mereça credibilidade.
Muitas vezes impede a esposa ou companheira de trabalhar,
levando-a a se afastar de pessoas junto às quais poderia buscar apoio. Subtrai
a possibilidade de ela ter contato com a sanidade e buscar ajuda. O medo da
solidão a faz dependente e sua segurança resta abalada. A mulher não resiste e
se torna prisioneira da vontade do par, o que gera uma situação propícia a uma
verdadeira lavagem cerebral, campo fértil para o surgimento do abuso psicológico.
Assim, facilmente a vítima encontra explicações,
justificativas para o comportamento do parceiro. Acredita que é uma fase, que
vai passar, que ele anda estressado, trabalhando muito, com pouco dinheiro.
Procura agradá-lo, ser mais compreensiva, boa parceira. Para evitar problemas,
afasta-se dos amigos, submete-se à vontade do agressor, só usa as roupas que
ele gosta, deixa de se maquiar para não desagradá-lo. Está constantemente
assustada, pois não sabe quando será a próxima explosão, e tenta não fazer nada
errado. Fica insegura e, para não zangar o companheiro, começa a perguntar a
ele o que e como fazer, torna-se sua dependente. Anula a si própria, seus
desejos, sonhos de realização pessoal, objetivos próprios.
O agressor sempre atribui a culpa à mulher, tenta justificar
seu descontrole na conduta dela, suas exigências constantes de dinheiro, seu
desleixo para com a casa e os filhos. Alega que foi ela quem começou, pois não
faz nada certo, não faz o que ele manda. Ela acaba reconhecendo que ele tem
razão, que em parte a culpa é sua. Assim o perdoa. Para evitar nova agressão,
recua, deixando mais espaço para a agressão.
Nesse momento a mulher vira um alvo fácil. A angústia do
fracasso passa a ser seu cotidiano, questiona o que fez de errado, sem se dar
conta de que para o agressor não existe nada certo. Não há como satisfazer o
que nada mais é do que desejo de dominação, de mando, fruto de um comportamento
controlador.
Depois... vem o arrependimento, pedidos de perdão, choro,
flores, promessas. A vítima acredita que ele vai mudar e se sente protegida,
amada, querida. As cenas de ciúmes são recebidas como prova de amor, e ela fica
lisonjeada.
Tudo fica bom até a próxima cobrança, ameaça, grito, tapa...
Forma-se um ciclo em espiral ascendente que não tem mais
limite.
O homem não odeia a mulher, ele odeia a si mesmo. Muitas
vezes ele foi vítima de abuso ou agressão e tem medo, precisa ter o controle da
situação para se sentir seguro. A forma de se compensar é agredir.
A sociedade protege a agressividade masculina, constrói a
imagem da superioridade do homem. Afetividade e sensibilidade não são
expressões da masculinidade. O homem é retratado pela virilidade. Desde o
nascimento, é encorajado a ser forte, não chorar, não levar desaforo para casa,
não ser “maricas”. Os homens precisam ser super-homens, não lhes é permitido
ser apenas humanos.
A idéia da família como uma entidade inviolável, protegida
da interferência até da Justiça, faz com que a violência se torne invisível.
A violência é protegida pelo segredo; agressor e agredida
fazem um pacto de silêncio, que o livra da punição. Estabelece-se um verdadeiro
ciclo, a mulher não se sente vítima, o que faz desaparecer a figura do
agressor. Mas o silêncio não gera nenhuma barreira. A falta de um limite faz com
que a violência se exacerbe. O homem testa seus limites de dominação. Quando a
agressão não gera reação, aumenta a agressividade. O agressor, para conseguir
dominar, para manter a submissão, exacerba na agressão.
A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue
seca, mas a perda da autoconfiança, a visão pessimista, a depressão, essas são
feridas que não curam.
Por isso, é preciso romper o pacto de silêncio, não aceitar
sequer um grito, denunciar a primeira agressão. É a única forma de estancar o
ciclo da violência da qual a mulher é a grande vítima.
PS: Prestando um serviço de utilidade pública, vale dizer
que em 85% dos casos, só o fato de o agressor ser denunciado e chamado pela
polícia a se explicar, já é o bastante para que não volte a agredir. Portanto,
no tocante a violência doméstica, perdoar e compreender depende de cada caso.
DENUNCIAR É IMPERATIVO A TODOS ELES
Fonte: Vila mulher por uma mulher