Ela não passa de um arbusto fuleiro, raquítico, de folhas
miúdas, uma planta guerreira, capaz de crescer num solo pobre e em condições
extremas. Para a biologia, ela não tem muita importância: cresce apenas num
pedacinho da cordilheira dos Andes, perto da linha do Equador, lá onde o frio
medonho das montanhas se encontra com o bafo quente da Amazônia. Mas a
convivência entre esta espécie vegetal e uma certa espécie animal – o Homo
sapiens – é uma história tremendamente reveladora do tempo em que vivemos e das
mudanças que estão acontecendo no mundo.
Trata-se da coca. Como tantas plantas que crescem perto de
seres humanos, a coca coevoluiu com a humanidade ao longo dos milênios. Em
outras palavras: ela foi se adaptando às pessoas, enquanto as pessoas iam se adaptando
a ela. Na medida em que os homens e mulheres andinos foram selecionando traços
que lhes interessavam, eles espalhavam sementes e iam moldando a planta. É por
isso que as folhas da coca contêm um certo alcaloide que se encaixa com
precisão no cérebro de humanos: a cocaína.
Os índios andinos há muitos séculos mascam a folha da coca
ou fazem chá com ela, e isso os tem ajudado a suportar a exaustão e as dores de
cabeça causados pela altitude, além de gerar um efeito anestésico e
cicatrizante e de diminuir o apetite, o que é útil dada a escassez daquela
terra hostil.
Até que veio o século 19. Naquele tempo, acreditava-se que o
homem seria capaz de decifrar todos os segredos da natureza, e de reproduzi-los
em laboratório. A ciência dos anos 1800 era irmã gêmea da indústria: enquanto
cientistas saíam pelo mundo catalogando plantas e encontrando moléculas com
efeito medicinal, como a cocaína, os laboratórios farmacêuticos transformavam
conhecimento ancestral em produtos que valem dinheiro.
Em 1855, um químico alemão conseguiu isolar a cocaína em
laboratório. Não demorou para que surgissem produtos derivados da coca, como
por exemplo um certo tônico medicinal estimulante inventado em 1886 por uma
pequena empresa farmacêutica americana: a Coca-Cola.
Quando o século 20 começou, acreditava-se que consumir
plantas inteiras pelas suas propriedades medicinais era coisa do passado: o
futuro seria de produtos da indústria farmacêutica. Foi aí que começaram a
surgir proibições de plantas in natura. A planta da coca foi sofrendo
crescentes restrições, até ser finalmente proibida no mundo inteiro em 1961.
Plantas de coca deveriam ser destruídas, a não ser aquelas poucas que seriam
usadas pela indústria: a Coca-Cola, por exemplo, continua até hoje comprando
folhas de coca da Colômbia, que passam por um processo para retirar a cocaína.
O bizarro dessa história é que, pelas leis do século 20, os
índios andinos, que consomem a folha há milênios, estão proibidos de fazê-lo.
Mas a Coca-Cola que se inspirou nesses índios para gerar um negócio bilionário,
pode usar as folhas, desde que retire a cocaína. E, enquanto isso surgiu um
mercado ainda mais bilionário de cocaína ilegal, turbinado pela proibição, que
multiplica os lucros e gera violência.
Hoje se sabe que nem sempre produtos industrializados são
melhores do que produtos naturais. Plantas in natura contêm fibras, que
retardam a absorção de nutrientes e evitam grandes picos. É por isso que mascar
folha de coca ou tomar chá não faz mal à saúde, enquanto cheirar pó ou fumar
crack causa altíssimos índices de dependência. É por isso, também, que
alimentos industrializados feitos com grande quantidade de açúcar refinado,
como a Coca-Cola, tendem a gerar dependência e provavelmente estão por trás da
epidemia global de obesidade e diabetes que assola o mundo.
Agora, em janeiro de 2013, a Bolívia avisou que não vai mais
respeitar a proibição da folha da coca. A decisão boliviana passou na ONU,
apesar da oposição dos inventores da Coca-Cola os Estados Unidos, e de mais 14
países – eram precisos 63 votos contrários para barrá-la. É a primeira vez,
desde 1961, que um país consegue legalizar uma substância considerada droga
pela ONU.
Será que no século 21 a folha da coca será não apenas
legalizada, mas usada mundo afora para tratar dependentes de crack e cocaína (a
folha alivia a fissura, sem os efeitos indesejáveis). Será que a Coca-Cola
passará a comercializar bebidas in natura, sem açúcar refinado, saudáveis como
o chá de coca? Será que teremos políticas mais razoáveis e menos bizarras para
regular os mercados de drogas, medicamentos e alimentos? Qualquer que seja a
resposta, ela passa por esse arbusto fuleiro e raquítico.
Fonte: Superinteressante, texto de Denis Russo Burgierman
Fotos – planta de coca: Darina CC, rótulos de Coca-Cola:
Richard Warren Lipack CC