Como a Colômbia se tornou a única nação — até hoje — a desistir de sediar uma Copa do Mundo

BOLA FURADA: Nos cartazes para a Copa de 86, o simpático mascote pedia para que os colombianos colocassem "mãos à obra". Não puseram.Alfonso Senior, o pai da Copa da Colômbia em 1986, era um sonhador. No final dos anos 40, ainda como presidente do clube Millonarios de Bogotá, ele movimentou o futebol colombiano com a contratação de alguns dos maiores atletas do continente. Sem pagar taxas de transferência, o cartola oferecia aos jogadores salários irrecusáveis, bem acima da média. O sistema era irregular, claro, mas atraía estrelas. Funcionou para trazer o argentino Alfredo Di Stéfano, um dos melhores atacantes do século 20, e inspirou rivais a fazerem o mesmo. Em pouco tempo, os gramados do país contavam com astros como o brasileiro Heleno de Freitas, que acabou no Atlético Junior, e Adolfo Pedernera, do Huracán.

Quando a Fifa ameaçou punir todo mundo e exigiu a devolução dos craques aos times de origem, a farra terminou. O campeonato colombiano nunca mais teve a mesma atenção internacional. Já Alfonso Senior ficou com a imagem de dirigente visionário. Por essa fama, poucos o contrariaram quando, décadas mais tarde, sugeriu que o país recebesse a Copa do Mundo de 86. A ideia veio depois do sucesso do torneio no México, em 1970, o primeiro da América Latina transmitido ao vivo para os cinco continentes.

Sob comando de Senior, a Federação Colombiana assumiu, em 1974, a responsabilidade de sediar o evento. Enquanto o povo comemorava timidamente, a Fifa listou suas exigências. Para a Copa, a Colômbia teria 12 anos para organizar seu futebol e sua infraestrutura. Depois de oito anos de turbulências sociais, pedidos extravagantes e descasos políticos, o país desistiu do evento – se tornando a primeira (e única) nação que se negou a receber uma Copa.

SÓ NO PAPEL: No desenho maior, o plano para restaurar o Estádio El Campín, em Bogotá. O menor seria o símbolo do evento: uma torre de 32 andares anexada ao campo

O “DEIXA QUE EU DEIXO”
Segundo o historiador Tobías Carvajal, a Copa na Colômbia nunca esteve perto de sair do papel. Desde o anúncio da sede, afirma, o governo não ofereceu qualquer apoio para realizar o evento. “O suporte estatal foi só na base da palavra, com tapinhas nas costas”, diz Carvajal, autor do livro Memorias Deportivas, sobre o esporte colombiano no século passado. Ano a ano, as autoridades da Colômbia mostraram um jeitinho muito particular de adiar as tarefas. Todos empurraram as responsabilidades para o sucessor. O presidente Misael Pastrana, do Partido Conservador, fez maquetes de estádios e deixou o cargo em agosto de 1974, dois meses após a escolha do país como sede. O seguinte foi o liberal Alfonso López Michelsen, que ficou só no discurso. “Ele se limitou a manejar o assunto com diplomacia, sabendo que no Mundial já seria ex-presidente há oito anos”, diz Carvajal. O Partido Liberal seguiria no poder até a metade de 1982, com a sucessão de Julio César Turbay. Ao final da gestão Turbay, a única obra em andamento era a do Estádio Metropolitano de Barranquilla.

Para piorar, a Fifa trabalhava para elevar o status da Copa do Mundo. João Havelange havia assumido o comando com a promessa de aumentar a participação dos times da África e da Ásia. Também pretendia tornar o futebol lucrativo. Sob sua gestão, o esporte começou a ganhar aspecto de negócio milionário que tem hoje. Grandes contratos de patrocínio foram assinados e, para Havelange, ampliar a Copa virou necessidade de mercado. Na edição de 1982, na Espanha, o número de participantes pulou de 16 para 24.

O aumento de times pode não ter atrapalhado os planos dos espanhóis, que já possuíam boa infraestrutura, mas foi catastrófico para a Colômbia. O plano original de Alfonso Senior cogitava entre seis e oito cidades-sede. A Fifa exigia 12 e pedia no mínimo quatro estádios para mais de 60 mil torcedores, requisito que nenhum campo do país cumpria. Mais surpreendente ainda foi o pedido de instalação de uma malha ferroviária entre as cidades — meio de transporte que a Colômbia não usava e, em certas regiões, o relevo tornava impraticável.

SEM MEDALHAS: Antes uma das favoritas por jogar em casa, a Colômbia sequer se classificou para a Copa de 86, no México

OS CAMPOS SOCIAIS
Passados oito anos da escolha como sede, os problemas da Colômbia haviam se multiplicado. Além da falta de escolas e hospitais, a crise da dívida externa do início dos anos 80 — que abalou a América Latina — pressionou o estreito orçamento do governo. A nação também lutava contra os grupos armados e organizações do narcotráfico. Guerrilhas como as Farc e o Movimento 19 de Abril (M-19) cresceram em poder e influência na virada da década. À revelia do governo, grupos paramilitares surgiram para combatê-los, gerando violentos confrontos. Em cidades como Cali e Medellín, os cartéis do tráfico controlavam setores inteiros da sociedade, até mesmo clubes de futebol. Não havia clima para se pedir apoio estatal.

Não bastasse isso, o país experimentava outra troca presidencial: depois de dois mandatos liberais, o Partido Conservador voltou ao poder com Belisario Betancur, em agosto de 1982.Sem ligação com os gestores anteriores, o novo presidente tinha caminho livre para dizer não à Fifa. Foi o que fez. Dois meses e meio depois de tomar posse, deu seu famoso discurso abrindo mão da Copa de 86. “Gabriel García Márquez compensa o que perdemos com a vitrine do torneio”, disse, referindo-se ao prêmio Nobel de Literatura que o escritor ganhara naquele ano.

Canadá, Estados Unidos, México e até o Brasil mostraram interesse em herdar a Copa. A proposta brasileira se sustentava nos novos estádios construídos pela ditadura ao longo dos anos 70, mas acabou sendo retirada — Havelange era desafeto de Giulite Coutinho, então presidente da CBF. Sem o Brasil no páreo, o México se tornaria o primeiro país a receber a competição duas vezes. Nem mesmo o terremoto de setembro de 1985 — que arrasou a capital e deixou pelo menos 10 mil mortos — impediu o torneio.

Com a desistência da Colômbia, vieram as promessas. “Disseram que o dinheiro seria investido para melhorar a rede hospitalar, os centros educativos e as estradas”, diz Carvajal. “Uma mentira gigantesca.” A insatisfação cresceu quando os colombianos perceberam que nem o cancelamento da Copa melhoraria o país. Mesmo depois do anúncio da desistência, as pessoas cantavam La Jugada del Mundial, uma música de protesto criada pela cantora Eliana Bongean para criticar os maus gastos do dinheiro público.

Para Marcelo Proni, economista da Unicamp, as insatisfações da Colômbia pré-Copa se assemelham às revoltas populares do Brasil de 2013 — ainda que aqui não haja risco de cancelamento (leia box ao lado). Ambos os povos rejeitam o “discurso do legado”, usado para justificar gastos exorbitantes. “A Copa é mais cara em países latinos e africanos, onde não há estrutura”, afirma. O economista Stefan Szymanski, coautor do livro Soccernomics, concorda. “Nações em desenvolvimento devem ter chance de receber esses torneios. Mas com orçamento mais sensato”, diz. Talvez a Fifa aprenda a lição.


E SE O BRASIL DESISTISSE?
A hipótese, garantem os organizadores, é nula. Mas, vá lá, supondo que ocorra uma tragédia e o evento seja cancelado, é bem provável que a Fifa exija uma gorda indenização do país. “Embora não haja nada disso no contrato, o Brasil com certeza sofreria uma sanção moral perante o mundo”, diz o relator da Lei Geral da Copa, o deputado federal Vicente Cândido (PT-SP).

O clima no Brasil sem Copa também seria bem diferente do colombiano. Não haveria festa, nem clima de revolução. Povo, oposição e situação acreditam que o cancelamento do evento seria terrível para a imagem e também a economia do país. “Mostraríamos incapacidade em realizar um evento de grande porte”, diz o deputado federal Roberto Freire (MD-SP), crítico do governo.

Já os responsáveis pela Copa acreditam que a desistência traria prejuízos incalculáveis para o turismo. Em 2012, o Governo Federal traçou meta de expandir as receitas com turistas estrangeiros de US$ 7,7 bilhões anuais para US$ 10,3 bilhões até 2016. Tal valor serviria para equilibrar o setor — hoje deficitário.

A tese tem força entre os petistas, mas o economista Stefan Szymanski é menos otimista. “Muitos deixarão de ir ao Brasil porque não gostam de futebol e dos incômodos que ele traz”, diz. “O Reino Unido viu declínio de turistas nas Olimpíadas 2012.” Sua visão cética também se estende aos investimentos em infraestrutura. “São sempre pequenos e espalhados por anos. Difíceis de ver.”

Fonte: Revista Galileu