É década de 1930 no Brasil. Um time de futebol com jogadores
negros ostenta uma bandeira com o Cruzeiro do Sul — e a suástica nazista. O
gado da fazenda está marcado com o mesmo símbolo. Um retrato de Hitler está na
parede do casarão. A foto do tal time foi encontrada na fazenda Cruzeiro do
Sul, cujo nome explica a constelação que a nomeia. Mas e a suástica?
Campina do Monte Alegre é uma cidade de 5.000 pessoas, no
interior de São Paulo. Ali, o rancheiro José Ricardo Rosa Maciel, o Tatão,
descobriu um segredo que ficou escondido por 70 anos. “Eu cuidava dos porcos
numa casa antiga. Um dia, eles quebraram uma parede e escaparam. Notei que os
tijolos tinham caído. Foi um choque enorme.” Os tijolos tinham a marca da
suástica. A parceira de Tatão, Senhorinha Barreta da Silva, estudava na
Universidade de São Paulo e levou uma das peças para seu professor de história,
Dr. Sidney Aguilar Filho.
TATÃO MOSTRA OS TIJOLOS DA FAZENDA (FOTO: GIBBY ZOBER)
“Fui até a fazenda, onde encontrei uma profusão de insígnias
com a suástica, não só nos tijolos, mas em fotografias da época, marcas nos
animais, bandeiras. Também achei uma história paralela sobre a transferência de
50 meninos de dez anos que foram tirados de um orfanato no Rio de Janeiro e
levados para Campina do Monte Alegre em 1933. Nessas duas histórias, estava a
presença da ideologia nazista”, afirma Aguilar Filho.
Depois de oito anos de pesquisa, apresentou em 2011 a tese
“Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à
infância desamparada no Brasil (1930-1945)”. As crianças foram tiradas do
orfanato Romão de Mattos Duarte, da Irmandade de Misericórdia. O primeiro
grupo, com dez, saiu em 1933, depois mais 20 e outro de 20. Elas ficaram sob a
custódia de Osvaldo Rocha Miranda, um dos cinco filhos do industrial Renato
Rocha Miranda. A família era dona do famoso Hotel Glória e estava entre as mais
ricas e influentes da então capital do Brasil. Com outros dois irmãos, Osvaldo
era membro da Ação Integralista Brasileira, organização extremista de direita.
“Minha pesquisa se focou em que sociedade era essa, que
Brasil era esse?”, explica Aguilar Filho. “Era uma cultura extremamente
racista e preconceituosa. Na geração seguinte à abolição da escravatura, a
estética era extremamente marcada pelo racismo. Com os olhos de hoje, é muito
chocante”, diz Aguilar Filho.
EUGENIA BRASILEIRA
O artigo 138 da Constituição da época estabelecia que era
função do Estado promover educação baseada em crenças eugênicas, ele aponta. No
fim dos anos 1930, a Alemanha era o principal parceiro econômico do Brasil.
Havia também, como consequência, fortes laços políticos, ideológicos e
culturais. Aqui estava o maior partido nazista fora da Alemanha, com mais de 40
mil afiliados.
Aloysio da Silva e Argemiro dos Santos estavam na primeira
leva. “Eles relatam um tratamento muito rígido, sujeito a punição física, sem
permissão para deixar a fazenda sozinhos ou sem autorização, trabalho
intensivo, com pouca ou nenhuma remuneração. Aloysio se refere a uma infância
roubada e fala de escravidão. Argemiro não usa a palavra, mas confirma o uso
sistemático da palmatória, violência física, chicotadas e punições”, afirma
Aguilar Filho.
O TIME DE FUTEBOL DO CRUZEIRO DO SUL ERGUE A BANDEIRA COM O
SÍMBOLO NAZISTA (FOTO: REPRODUÇÃO)
Maurice Rocha Miranda, sobrinho bisneto de Otavio e Osvaldo,
nega que as crianças fossem “escravas” e diz que sua família deixou de apoiar
os nazistas muito antes da Segunda Guerra.
Mas a história dos dois sobreviventes — que nunca mais se
encontraram — é curiosamente similar. Ainda vivendo perto da Cruzeiro do Sul,
Aloysio, 90, relembra quando foi levado do orfanato. Com doces e “lábia”,
Osvaldo disse que daria a eles uma nova vida. “Ele prometeu o mundo. Mas não
era nada daquilo. Nós recebemos enxadas, uma cada. Para tirar o capim, para
limpar a fazenda. Fiquei preso porque me enganaram. Fui trapaceado. Esquentou
meu sangue”, diz Aloysio. Os meninos eram chamados por números. Aloysio era o
23. Dois cães de guarda mantinham os garotos comportados.
Outro sobrevivente, Argemiro dos Santos, 89, vive em Foz do
Iguaçu. “Na fazenda havia fotografias de Hitler, e o tempo todo você era
forçado a saudar com o ‘anauê’, a saudação alemã”, ele diz. O “anauê” era, na
verdade, a saudação dos integralistas, gesto idêntico ao “sigheil” da Alemanha
hitlerista. Argemiro escapou da fazenda para se juntar à Marinha, indo à Europa
lutar contra o führer cujos admiradores foram seus captores.
Fonte: Revista
Galileu por Gibby Zobel
Foto de capa: Carlos Fonseca/ Editora Globo