A cor da pele não é assunto entre os chimpanzés. Se você
depilar um, uma pele branca vai aparecer por baixo da manta de pelos. Passa a
gilette em outro e surge uma pele preta. Manda mais outro para a cera quente, e
quem sai do centro de depilação é um chimpanzé rosa. Na verdade, eles mudam de
cor ao longo da vida: nascem mais claros e vão escurecendo. Mas não importa. A
cor da pele é tão relevante para eles quanto a do pâncreas é para a gente. Não
que eles não sejam racistas. No mundo chimpanzé, o pelo pode ser de qualquer
cor, contanto que seja preto. Quando nasce algum macaquinho albino, com pelo
branco, não tem jeito. Os outros chimpanzés não aceitam. Ele vai apanhar, ficar
isolado. E morrer logo – ou linchado ou de fome.
Nosso ancestral comum com os chimpanzés, um símio que viveu
há seis milhões de anos, provavelmente obedecia a mesma regra. A cor da pele
não tinha importância, só a dos pelos. Mas uma hora essa história mudou.
Há coisa de dois milhões de anos alguns dos descendentes
desse ancestral comum começaram a perder pelos. A cada mil partos nascia um
macaco pelado. Um mutante. Algumas dessas aberrações genéticas tinham o mesmo
destino dos albinos: bullying e morte prematura. Outros não. Talvez a falta de pelos
tenha ajudado eles a lidar melhor com o calor africano, e eles conseguiam ir
mais longe para arranjar comida. Desse jeito, viviam mais e melhor. Então se reproduziam
mais.
Deu tão certo que, uma hora, esses macacos pelados tinham
formado uma super espécie – eram maiores e bem mais inteligentes que seus
antepassados peludos. Nada mal para quem começou a vida evolutiva apanhando.
Hoje esse animal sem pelos é conhecido como Homo erectus – são os nossos avós
diretos. E as mutações não pararam lógico. Quanto maior a inteligência de um
erectus, maior era a chance de ele deixar mais descendentes. Então 1,8 milhão
de anos depois já havia alguns erectus com cérebro gigante, e, de quebra, com
traços idênticos aos dessa maravilha genética que você vê no espelho todas as
manhãs. Era o Homo sapiens. Você, em suma.
E você era negro. A pele escura era a melhor para aguentar o
sol africano sem a proteção de uma camada de pelos, já que é menos propensa a
brindar seu dono com um câncer de pele. Por essas, nossa linhagem trocou o
arco-íris de pigmentação que provavelmente tinha antes de perder os pelos por
uma tonalidade só. Ficamos monocromáticos.
Mas não demorou e o sapiens começou a colonizar outras
partes do mundo. Um dos momentos mais definidores dessa fase foi quando
chegamos à Europa, há 40 mil anos, e exterminamos os neandertais. Eles eram
nossos primos, também descendentes do erectus. A diferença é que os ancestrais deles
tinham saído da África há 400 mil anos (200 mil antes de a nossa espécie
surgir). Por essas, os neandertais já nasciam adaptados ao frio: eram fortes
que nem um bisão e, como todo mamífero que vive no gelo, tinham pele e cabelos
claros. Não que camuflagem na neve fosse tão importante para eles quanto é para
um urso polar ou uma raposa siberiana. Os neandertais mantiveram a mutação dos
seus avós africanos – a de não ter pelos (pelo menos não tantos pelos). Então
precisavam se cobrir de peles o tempo todo para aguentar as temperaturas
negativas. A vantagem da pele clara era outra: ela sintetiza melhor a vitamina
D nas altas latitudes, onde não existe sol o bastante para fazer esse trabalho
a contento. Num tempo em que nutriente era tudo o que faltava, qualquer
vantagem na absorção de algum deles fazia toda a diferença. O processamento
mais eficaz de vitamina D era uma vantagem. Então os neandertais foram
embranquecendo de geração em geração.
Não que isso tenha ajudado muito quando nós, negros Homo
sapiens, entramos na Europa. Nossa tecnologia àquela altura era bem superior à
dos neandertais, com lanças mais leves e afiadas. Mas o que fazia mesmo a
diferença era a nossa organização social: andávamos em grupos de 100, 200
pessoas. Eles, em famílias com no máximo 10 indivíduos. Cada encontro, então,
era um massacre. Não demorou e já tínhamos matado todos os neandertais.
Algumas fêmeas de neandertal, na verdade, conseguiam escapar
da morte imediata trabalhando como escravas sexuais dos invasores sapiens. A
maior evidência disso é que 20% do genoma neandertal continua vivo no nosso
DNA. Todo não africano tem entre 2% e 3% de DNA neandertal dentro de suas
células. Bom, pode ser também que machos neandertais tenham inseminado nossas
fêmeas ao longo do processo, mas dificilmente essa foi a regra: mulheres são um
espólio de guerra constante na nossa história, e talvez mais ainda na nossa pré-história…
Mas não foi a hibridização com os neandertais que
empalideceu o sapiens na Europa. Não havia neandertais o bastante para fazer a
diferença no pool genético da pigmentação e, provavelmente, os machos nascidos
desses encontros eram inférteis, como acontece com machos filhos de tigres com
leoas – aí complica mais ainda.
O sapiens embranqueceu foi pelo mesmo processo de sempre: a
cada mil, dez mil nascimentos, aparecia um mutante. Em alguns casos, a mutação
era ter uma pele mais clara. Esses indivíduos deviam levar seus pescotapas na
infância, por serem diferentes do resto. Alguns certamente eram mortos pela
própria família logo que viam a luz. Mas naquele ambiente ser branco ainda era
vantagem, também por causa da vitamina D. Uma vantagem grande o bastante para
que, em poucas dezenas de milhares de anos, só nascessem sapiens de pele clara
nas latitudes mais altas. Era a evolução emulando dentro da nossa espécie o que
já tinha acontecido entre os ancestrais dos neandertais num passado ainda mais
remoto.
Hoje a cor da pele não faz diferença do ponto de vista
evolutivo: por mais que a nossa dieta não seja uma maravilha, temos acesso a
tantos nutrientes que a capacidade de sintetizar mais vitamina D não tem mais
com apitar na cor da pele. Nem a vitamina D nem a quantidade de sol do
ambiente. Um Nigeriano vai viver o mesmo tempo (e ter o mesmo sucesso
reprodutivo) vivendo em Copenhague ou em Salvador. Um dinamarquês, idem.
O mais provável, então, é que fiquemos todos marrons em
alguns milhares de anos, já que mais hora menos hora todos os genes de
pigmentação dos sapiens vão acabar misturados, em todos os indivíduos. Não
que isso vá ser a panaceia da humanidade. Na Índia todo mundo é marrom faz
tempo, e isso não impediu que surgisse o sistema de castas. Os Hutus e os
Tutsis, de Ruanda, são quase idênticos, mesmo para os ruandeses, nem por isso
deixaram de protagonizar um dos maiores massacres étnicos da história, com 800
mil Tutsis assassinados por Hutus. Um Corintiano pode ser geneticamente
indiscernível de um Palmeirense, e de vez em quando um acha motivo para
matar o outro pela cor da camisa. O problema é que sempre nos juntarmos em
tribos de “iguais” para lutar contra qualquer coisa que pareça “diferente”. É
parte da nossa natureza. É parte da natureza de qualquer animal – até por isso
todos os mutantes sofrerem, em todas as espécies. Mas, ironicamente, são os
mutantes, os diferentes, que fazem a evolução andar. Não fossem por eles, nem
seríamos todos macacos. Seríamos todos amebas, porque a evolução simplesmente
não teria acontecido. Mas graças a ela hoje temos neurônios o bastante para
decidir não nos comportar como amebas; cérebro suficiente para entender que o
próprio conceito de raça é uma ilusão. Perpetrada por um instinto estúpido.