A puberdade pode ser um momento difícil para qualquer um,
mas não tão difícil como para as crianças “guevedoces”, que literalmente mudam de
sexo quando atingem a adolescência. Por causa de deficiência genética, homens
nascem parecendo mulheres e só desenvolvem pênis na puberdade; caso levou ao
desenvolvimento de medicamento que já ajudou milhões.
A pequena aldeia de Salinas, localizada na província de
Barahona, parte sudoeste da República Dominicana, é como muitos outros locais
do Caribe.
Os nativos são simpáticos, há praias incríveis e o sol é
constante. Mas há uma peculiaridade que o diferencia do resto do mundo. Em
Salinas, ser um pseudo-hermafrodita é tão comum que é aceito legalmente como
algo entre o sexo masculino e feminino.
Na puberdade, uma em cada 90 crianças nascidas lá, passam
por uma transformação, de menina para menino. Conhecidos como “Guevedoces” (na
tradução, algo como “pênis aos 12”), estas crianças são conhecidas em termos
médicos como “pseudo-hermafroditas”.
A condição não é isolada na República Dominicana – foi
também observada na Turquia e Nova Guiné, embora em menor escala.
Johnny
Como outros guevedoces, Johnny foi criado como menina
porque, em vez de ter testículos ou pênis visíveis, tinha o que parecia ser uma
vagina. Apenas quando ele chegou à puberdade seu pênis se desenvolveu e os
testículos desceram.
Johnny, que era conhecido como Felicita, lembra de ir à
escola com um pequeno vestido vermelho, apesar de dizer que nunca foi feliz
fazendo coisas de menina.
"Nunca gostei de me vestir de menina e quando me davam
brinquedos de menina eu nem brincava. Quando via um grupo de meninos, ia jogar
bola com eles."
Quando ele se tornou claramente uma pessoa do sexo
masculino, passaram a implicar com ele na escola.
"Eles diziam que eu era o diabo, coisas ruins,
palavrões, e eu não tive escolha a não ser brigar com eles, porque eles estavam
passando da linha."
De Carla a Carlos
Já Carla, aos sete anos, está prestes a se tornar Carlos. A
mãe dele antecipou a mudança.
"Quando ela fez cinco anos percebi que, sempre que via
um de seus amigos homens, queria brigar com eles. Os músculos e o peitoral dela
começaram a crescer. Dava para ver que ela seria menino. Eu a amo, não importa
quem seja. Menina ou menino, não faz diferença", diz a mãe.
Mas por que isso acontece?
Uma das primeiras pessoas a estudar esta condição incomum
foi Julianne Imperato-McGinley, do Cornell Medical College, em Nova York.
Nos anos 1970, ela partiu para esta parte longínqua da
República Dominicana, levada por relatos extraordinários de meninas que estavam
virando meninos.
Ao chegar, ela descobriu que os boatos eram verdadeiros. Fez
diversas pesquisas com os guevedoces (inclusive biópsias provavelmente
dolorosas nos testículos deles) antes de descobrir a causa do mistério.
Quando uma pessoa é concebida, ela normalmente tem um par de
cromossomos X se for virar uma menina e um par de cromossomos XY se for ser
homem.
Nas primeiras semanas da vida uterina ela não é nem homem
nem mulher, embora em ambos os sexos os mamilos comecem a crescer.
Então, cerca de oito semanas após a concepção, os hormônios
sexuais aparecem. Se você é geneticamente homem, o cromossomo Y instrui suas
gônadas a virar testículos e envia testosterona para uma estrutura chamada
tubérculo, onde ela é convertida em um hormônio mais potente chamado
dihidrotestosterona. Este hormônio transforma o tubérculo em um pênis.
Se você é mulher e não produz dihidrotestosterona, o
tubérculo vira o clitóris.
Quando Imperato-McGinley pesquisou os guevedoces, descobriu
que o fato de não terem genitália masculina ao nascer se deve à deficiência de
uma enzima chamada 5-alfarredutase, que normalmente converte a testosterona em
dihidrotestosterona.
Esse problema parece estar ligado a uma deficiência genética
comum em parte da República Dominicana, mas rara em outros locais. Então os
meninos, apesar de terem cromossomos XY, parecem mulheres quando nascem.
Na puberdade, como outros meninos, eles recebem uma segunda
onda de testosterona. Desta vez o corpo responde e nascem músculos, testículos
e pênis.
As pesquisas de Imperato-McGinley mostraram que, na maioria
dos casos, os novos órgãos masculinos funcionam bem e a maioria dos guevedoces
passa a viver como homem. Alguns, no entanto, passam por cirurgia e continuam
sendo mulheres.
Medicina
Outra descoberta de Imperato-McGinley, que pode ter
profundas implicações para muitos homens ao redor do mundo, foi que os
guevedoces tendem a ter próstatas pequenas.
Essa observação, feita em 1974, foi aproveitada por Roy
Vagelos, chefe de pesquisa da gigante farmacêutica Merck. Ele deu início a uma
pesquisa que levou ao desenvolvimento do que virou um medicamente campeão de
vendas, finasterida, que bloqueia a ação da 5-alfarredutase, imitando a falta
de dihidrotestosterona nos guevedoces.
A finasterida é prescrita com frequência como um modo eficaz
de tratar hiperplasia prostática benigna, o aumento da próstata, um problema
enfrentado por muitos homens à medida que envelhecem. Também é usada para
tratar calvície masculina.
Uma última observação que Imperato-McGinley fez foi que
esses meninos, apesar de serem criados como meninas, em sua maioria
demonstraram preferências sexuais heterossexuais. Em seu artigo, ela concluiu
que os hormônios no útero tem um papel mais decisivo sobre a orientação sexual
do que o tipo de criação recebido.
Esse ainda é um tópico controverso. Entre os guevedoces que
encontrei, a orientação não se mostra muito definida.
Johnny teve vários casos com meninas desde que desenvolveu
genitália masculina, mas ainda está procurando amor. "Queria casar e ter
filhos, com uma parceira que ficasse comigo em tempos bons e ruins", diz
ele.
Outro guevedoce, Mati, decidiu desde nova que, apesar de
parecer menino, era menina.
*médico e
jornalista. A reportagem foi feita para a série 'Countdown to Life', do
canal BBC Two, que analisa como nos desenvolvemos no útero e como essas
mudanças, normais e anormais, têm impacto na vida futura.
Foto de capa: Catherine
e sua prima Carla, Guevedoces da República Dominicana (Foto: Da BBC)