Um texto da escritora francesa Corrine Maier tem causado
discussão no Brasil desde que ela, em um relato
para o site de notícias da BBC, disse, entre outras coisas, ter motivos
para odiar crianças. Mãe de dois filhos e autora do livro “No kids: 40 good
reasons not to have children” ("Sem crianças: 40 boas razões para não
se ter filhos", em tradução livre), a autora é polêmica e suas crenças
geraram revolta de muitas mães.
Contudo, embora seu relato pareça superficialmente um
desabafo de ódio à maternidade, ler com um pouquinho mais de cuidado nos mostra
quatro questões importantes que podem ser debatidas por todo mundo: mães, pais
e pessoas que não pretendem ter filhos, no intuito de desmistificar algumas
convenções sobre a maternidade e a paternidade, especialmente aquela que é real
e possível e não descarrega culpa nos indivíduos.
Nota da editora: Essa matéria te convida a
uma reflexão mais profunda sobre o texto que viralizou nas redes sociais e
gerou polêmica. O intuito não é defender a ideia levantada por Corrine, que é
colocada de maneira bastante dura, mas sim estimular um debate maior sobre o
tema. Mesmo para quem não concorde com o ponto de vista da autora, pode ser
importante refletir sobre o que está por trás dessas palavras, por mais que
elas não soem tão bem aos ouvidos de outras mães apaixonadas por seus filhos e
pela maternidade.
Romantização da maternidade
“Já é hora de
pararmos de vender a ideia de que bebês são sinônimo de felicidade”. Esse é o
primeiro ponto trazido pela autora, que pode ser relacionado à romantização
da maternidade. “Um filho é considerado uma garantia de felicidade, um
desenvolvimento pessoal e até um status social”, diz ela. Apesar de polêmica, a
frase pode não indicar que a mãe seja infeliz por ter um filho, mas sim
questione como muitas pessoas acreditam que ter um filho vai trazer toda a
felicidade e sensação de completude que falta para sua vida.
A realidade, no entanto, é que ter um filho não é somente
viver bons momentos e entender isso é importante. Além de todo o estresse e
cansaço cotidiano, que no geral sempre afetam as mulheres, a mãe ainda vai se
deparar com uma rotina exaustiva, de doação, situação que muito possivelmente
vai reduzir o tempo consigo mesma, para fazer outras coisas que gosta e dão a
sensação de realização.
É por isso que, de acordo com as ideias defendidas pela
francesa, não é um bebê que vai trazer plenitude e autorreconhecimento. Ele
pode, sim, ser muito amado e completar a família, mas não pode ser esperado
como a salvação para a sensação de frustração ou infelicidade. Essa salvação não
vem dele e acreditar nisso só aumentará os sentimentos negativos em relação a
maternidade, que infelizmente ainda são tabus. “Acho hipócrita esconder-me por
trás de uma fumaça de idealismo 'Não há nada mais bonito do que o sorriso de
uma criança' para justificar minhas opções questionáveis para a vida. Sou
totalmente contra essa lavagem cerebral”, escreve.
Maternidade compulsória e a crítica a quem não quer ter
filho
Como resultado dessa romantização da maternidade, outras
duas questões também abordadas por Corrine podem ser discutidas: a maternidade
compulsória e o rechaçamento de quem rompe com essa lógica.
Ou seja, a ideia de que toda mulher só é feliz e de que uma família
só é uma família depois do nascimento de um filho leva pessoas a serem mães e
pais sem questionar muito o que isso significa, seguindo apenas as normas
sociais e esquecendo-se das consequências que essa escolha implica. É claro que
isso não quer dizer que as pessoas não devam ter filhos, mas sim que seria mais
saudável tê-los por uma escolha racional e planejada. Isso refletiria melhor no
relacionamento dos pais e na vida da criança.
A mesma lógica – de que todo mundo precisa ser pai e mãe –
ainda faz com que aqueles que decidam não ter filhos sejam vistos com maus
olhos, como se não pudessem nutrir amor por outros indivíduos ou crianças. É o
que aponta a autora. “Indivíduos que não têm filhos são descritos como egoístas
e cidadãos de segunda classe. Muitos deles se sentem pressionados a se
justificar: 'Eu não posso ter filhos, mas eu adoro crianças'”, comenta.
Busca inalcançável pela perfeição
Outro ponto levantado pela autora é que as pessoas podem
querer tanto acertar sendo mãe e pai que acabam esquecendo de si e da sua responsabilidade
enquanto agentes de mudança desse mundo. “Ser mãe ou pai se tornou um trabalho
que consome muito tempo. Muitos pais vêm se envolvendo de maneira excessiva na
educação de seus filhos e se tornando 'hiperpais', presentes em todas as
frentes - garantindo um café da manhã balanceado, levando a atividades
extracurriculares, ajudando com a lição de casa...” escreve.
Pais e, especialmente, mães, querendo tanto acertar na
perfeição da criação dos filhos esquecem que eles são indivíduos diferentes e precisam
ser independentes, ter suas próprias escolhas e vontades respeitadas. O
resultado podem ser crianças sobrecarregadas com o peso da expectativa dos pais
sobre suas costas e pais e mães frustrados pôr o pequeno não ter correspondidos
aos anseios que são seus, e não deles.
Ainda segundo ela, além da frustração dupla, essa dedicação
integral 100% do tempo ainda retira momentos em que o indivíduo que se tornou
pai ou mãe teria para desenvolver outras habilidades, exercer outras funções
que, além de trazer prazer para si, poderia contribuir para "mudar o
mundo". Mundo este que será onde os filhos vão habitar. “Por que sempre se
diz que as crianças são o futuro? Precisamente porque não temos certeza sobre
um futuro. Nossa paixão por crianças está ligada à nossa crescente preocupação
com o futuro da humanidade. Com recursos naturais cada vez mais poluídos, em
que mundo devastado vamos viver amanhã? E pensar que nós desistimos de tentar
mudar isso Crianças, bem-vindas e boa sorte na entrada nesse mundo podre que
seus pais, que te amam muitíssimo, te deixaram. Eles passaram tanto tempo
cuidando de vocês que não tiveram tempo de transformar o mundo. Eles
desistiram, penduraram as chuteiras. 'A criança é o que há de mais
importante….'. Vocês vão nos perdoar, né?” finaliza a autora.
Sim, a ironia e o texto bastante incisivo de Corrine podem
tornar mais difícil a compreensão desses pontos importantes de maneira plena. É
difícil se questionar, entender os prazeres e dificuldades de ser mãe ou pai.
Mas, de toda forma, pode ser interessante pensar melhor no que ela pode estar
debatendo aqui.
Confira o texto na íntegra:
"É assustador pensarmos em quantos somos! O planeta
Terra tem uma população estimada de 7,5 bilhões de pessoas. Em 2100, seremos 11
bilhões. Como o planeta vai alimentar todo mundo?
Vivemos em uma sociedade obsessiva por crianças. Um filho
é considerado uma garantia de felicidade, um desenvolvimento pessoal e até um
status social.
Indivíduos que não têm filhos são descritos como egoístas
e cidadãos de segunda classe. Muitos deles se sentem pressionados a se
justificar: 'Eu não posso ter filhos, mas eu adoro crianças.' Quando ouço isso,
logo faço um comentário para inflamar a conversa. Algo como: 'Eu tenho filhos,
mas tenho razões para odiar crianças'.
Não que eu esteja na posição de defender a queda da
natalidade. Visto que tenho dois filhos, não posso dizer aos outros: 'faça como
eu'. Mesmo assim, acho hipócrita esconder-me por trás de uma fumaça de
idealismo ('Não há nada mais bonito do que o sorriso de uma criança') para
justificar minhas opções questionáveis para a vida. Sou totalmente contra essa
lavagem cerebral.
Já é hora de pararmos de vender a ideia de que bebês são
sinônimo de felicidade. Chega dessa grande 'ilusão sobre os bebês'!
Hoje em dia, é impossível expressar sua experiência com a
maternidade sem dizer: 'Eu sou uma mãe (ou um pai) feliz e meus filhos são
minha alegria'.
Sentir-se realizada com a maternidade (ou a paternidade)
agora é compulsório. Na minha experiência, a realidade é bem diferente: criar
um filho é 1% de felicidade e 99% de preocupação.
Ser mãe ou pai se tornou um trabalho que consome muito
tempo. Muitos pais vêm se envolvendo de maneira excessiva na educação de seus
filhos e se tornando "hiperpais", presentes em todas as frentes -
garantindo um café da manhã balanceado, levando a atividades extracurriculares,
ajudando com a lição de casa…
Eu mesma hoje sou perfeitamente ciente de como estava
envolvida - envolvida demais - e como me tornei o estereótipo da "mãe judia"
(superprotetora, intromissiva e controladora). E isso produz crianças
hipercontroladas e hiperobservadas. Tanto que eu penso em como eles conseguem,
de fato, virar adultos.
Por que tanta pressão? A resposta, claro, é fornecer um
número ainda maior de miniconsumidores que não vão se cansar nunca do
capitalismo, que precisa vender sempre mais. É em nome das crianças que os pais
compram carros, máquinas de lavar, casas e gadgets.
Crianças custam uma fortuna. Na Espanha, por exemplo, as
crianças custam entre 98 mil euros e 300 mil euros cada, segundo uma
organização de consumidores.
Criar meus filhos não apenas me deixou exausta, mas
também me levou à falência. Em breve, minha filha vai terminar seus estudos.
Vou dar uma festa. Finalmente não ter mais que bancá-la. Que alívio!
Por que sempre se diz que as crianças são o futuro?
Precisamente porque não temos certeza sobre um futuro. Nossa paixão por
crianças está ligada à nossa crescente preocupação com o futuro da humanidade.
Com recursos naturais cada vez mais poluídos, em que mundo devastado vamos
viver amanhã? E pensar que nós desistimos de tentar mudar isso!
Crianças, bem-vindas e boa sorte na entrada nesse mundo
podre que seus pais, que te amam muitíssimo, te deixaram. Eles passaram tanto
tempo cuidando de vocês que não tiveram tempo de transformar o mundo. Eles
desistiram, penduraram as chuteiras. 'A criança é o que há de mais
importante….'
Vocês vão nos perdoar, né?"