Psiquiatra faz 13 alertas sobre a série 13 Reasons Why, da
Netflix. Lançada no fim de março, a série 13 reasons why, da Netflix,
conquistou popularidade rapidamente e ensejou uma infinidade de análises e
comentários sobre o principal (e delicado) conteúdo abordado na trama: o
suicídio de uma adolescente.
A produção da cantora Selena Gomez inspirada homônimo no
livro de Jay Asher – expandido e transposto para as telas pelas mãos do
premiado dramaturgo Brian Yorkey – narra as razões pelas quais uma colegial diz
ter sido levada a tirar a própria vida. Gravadas em fitas cassetes e enviadas
postumamente, as mensagens responsabilizam os colegas de convívio pelo desfecho
trágico.
O tom de culpabilização coletiva e a abordagem crua – com
direito a cenas explícitas de estupro e do próprio ato do suicídio –
despertaram reflexão sobre a forma de tocar no assunto em uma produção
audiovisual. Enquanto houve quem ressaltasse a tentativa benéfica de promover
uma conscientização sobre a influência de bullying, assédio, machismo,
violência e omissão na decisão de se matar, surgiram ponderações em torno do
impacto nocivo provocado pelo tratamento dispensado ao tema central pelo
seriado.
As críticas negativas veem na “glamourização” do suicídio e
na utilização do autoextermínio como instrumento de vingança fatores de
propensão ao chamado efeito Werther – termo científico pelo qual a publicidade
de um caso notável serve de estímulo a novas ocorrências. Pessoas fragilizadas
psicologicamente seriam mais inclinadas a vivenciar de forma negativa a forma
como o suicídio é representado em 13 reasons why.
Psiquiatra, professor-doutor do Departamento de Psicologia
Médica e psiquiatra da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), Luís Fernando Tófoli elaborou 13 parágrafos para alertar
sobre a série. O texto elenca fatores de risco, condena a abordagem do programa
sob a luz da academia e faz advertência a pessoas em situação de
vulnerabilidade.
Veja a lista
elaborada pelo professor:
13 Parágrafos de Alerta sobre 13 reasons why para pais,
educadores e profissionais de saúde
Luís Fernando Tófoli
Luís Fernando Tófoli
1. A alardeada série da Netflix, “13 Reasons Why”,
baseada em um livro homônimo de Jay Asher (publicado no Brasil como “Os 13
Porquês”), aborda uma série de questões sérias: bullying no ensino médio,
machismo, LGBTfobia, abuso sexual e, de uma forma geral, a difícil missão de
adolescer. A série, porém, é focada em uma questão central, pivô de toda a
história: o suicídio de uma jovem de 17 anos, Hanna Baker, que faz 13 gravações
em fitas cassetes, apontando o dedo as pessoas que a desapontaram em seu
calvário na High School de uma pequena cidade americana.
2. Eu me vi na obrigação de assistir a todo o seriado
para poder trazer algumas informações para pais e profissionais de saúde e
educação. Não vou me estender na qualidade artística, até porque não é minha
função aqui, eu penso. No entanto, afianço que apesar da tensão que prende a
assistência até a resolução do mistério, os episódios são longos e cansativos
demais. A sensação final é de ser chantageado a aguentar a narrativa arrastada
só para poder saber por qual razão o protagonista e bom-moço Clay Jensen foi
incluído nas fitas de Hannah.
3. A razão principal pela qual eu escrevo estes parágrafos é
para focar na questão crucial de uma peça de ficção construída sobre um
suicídio adolescente. O suicídio está entre as principais causas de morte na
adolescência, competindo com acidentes causados por veículos e, no caso de
países como o Brasil, violência armada. Como um agente de formação no campo da
Psiquiatria e da Saúde Mental, me vejo na obrigação de fazer alguns comentários
– e, porque não, alguns alertas – sobre esta série.
4. Há sinais preocupantes de que as taxas de suicídios
de jovens estão crescendo no mundo e no Brasil. O país, aliás, está na
contramão das estatísticas no mundo: também os índices gerais estão subindo – e
já o estavam antes da crise econômica – ao invés de cair. Há várias hipóteses
sobre o que pode estar levando isso a acontecer, mas acho que o mais importante
é frisar que nunca tivemos uma campanha nacional responsável de prevenção do
suicídio – apesar do reconhecidamente importante papel do voluntariado do CVV-Centro
de Valorização da Vida – e de haver documentação sobre formas de se fazer essa
política pública de maneira eficiente.
5. Meu ponto principal neste texto não é estragar a
série ou dar spoiler, e sim de que pais, educadores e adolescentes estejam cientes
de que o programa tem o potencial de causar danos a pessoas que estão
emocionalmente fragilizadas e que poderão, sim, ser influenciadas
negativamente. Não é absurdo inclusive considerar que, para algumas pessoas, a
série possa induzir ao suicídio. Portanto, pessoas em situações de risco
deveriam ser desencorajadas a assistir a série. Não estou sozinho nisso, já há
pelo menos um crítico no Brasil, o Pablo
Villaça, que explicitamente está recomendando que não se assista ao seriado
(https://goo.gl/Z2Op17).
6. O principal erro da série é, de longe, mostrar o
suicídio de Hannah. A cena, que acontece no episódio final, é absolutamente
desnecessária na narrativa e claramente contrária ao que apregoam os manuais
que discutem prevenção de suicídio e mídia. Chega a ser absurdo que os autores
da série ignorem completamente o que indicam explicitamente as recomendações da
Sociedade Americana para Prevenção do Suicídio, que foram publicadas após a
morte do ator Robin Williams (https://goo.gl/vAQkg6) e cheguem à cara de pau de
tocar (não neste episódio) a música “Hey, Hey”, de Neil Young, que foi citada
na carta suicida do músico Kurt Cobain (https://goo.gl/droI3I).
7. É verdade que as recomendações são em geral
destinadas à imprensa, mas chega a ser absurdo que os realizadores de uma
produção sobre o tema não tenham se informado sobre os impactos do que é
conhecido como ‘efeito Werther’ – cujo nome vem de uma obra de arte e não de
uma ação de imprensa. O efeito é baseado no suposto impacto de Os Sofrimentos
do Jovem Werther, livro do século XVIII que alçou Goethe à fama
(https://goo.gl/2h4N8U).
8. Embora o aumento de suicídios na Alemanha atribuídos
ao livro jamais possa ser objetivamente medido, há já um consenso entre
suicidologistas de que o fenômeno sofre contágio pela mídia e de que há
maneiras pelas quais ele não deva ser retratado. Uma delas, e na qual a série
fracassa desgraçadamente, é em não romantizar ou embelezar um suicídio. Evitar
a divulgação de cartas suicidas é outro ponto – e é desnecessário dizer que a
série toda é uma enorme carta suicida, que embora ficcional, é ouvida pela voz
da protagonista, a narradora póstuma da história.
9. Outro problema sério da história, especialmente para
os sobreviventes (esse é o termo utilizado para os parentes e entes queridos de
quem se suicida), é a ideia da culpabilização do suicídio. Grande parte da
tensão da série gira em torno de quem é a “culpa” pelo suicídio de Hannah: ela,
seus amigos, a escola (que é processada pelos pais da menina), a sociedade. Os
especialistas entendem que a busca por culpados é dolorosa e improdutiva. O
suicídio é, na sua imensa maioria das vezes, um ato complexo, desesperado e
ambíguo, e achar que ele possa ter responsabilidade atribuível é equivaler sua
narrativa à de um crime. Embora isso seja compreensível em uma peça de ficção,
isso é muito deletério na discussão do tema no mundo real, onde ele de fato os
suicídios acontecem.
10. Dois fatos chamam a atenção ainda, como erros essenciais
da produção. Um é não tocar a questão do adoecimento mental, uma vez que a
maioria das pessoas que se suicidam apresentam transtornos mentais. O suicídio
de Hannah é discutido – como sói frequentemente aos americanos, um povo obcecado
pela pretensa liberdade de escolha – como uma “opção”, esquecendo que na grande
maioria das vezes a pessoa está aprisionada por um cenário falseado de opções
causado pelo seu estado mental. O outro fato é a impressão passada pela
narrativa – em especial no último episódio – de que buscar por ajuda é
inefetivo, quando isso pode ser a diferença, literalmente, entre a vida e a
morte.
11. Ainda sobre pedir ajuda, a divulgação da série
pretende vender a ideia de conscientização – contando, no Brasil, inclusive com
o apoio do CVV. Durante todos os 13 episódios que assisti no Netflix, no
entanto, não há qualquer sinal, indicação ou legenda que aponte a hotline do
CVV no Brasil (141) ou o seu site (http://www.cvv.org.br) para pessoas que
necessitem de apoio e estejam assistindo a história. Após o fim da trama há um
extra, meio documentário, meio making of que fala sobre prevenção de suicídio,
mas seria necessário, no mínimo, divulgar meios de socorro no início e no fim
de cada episódio.
12. Nunca é demais lembrar que indagar uma pessoa sobre
seu risco de suicídio não aumenta a chance dele acontecer e pode ser a atitude
salvadora em diversos casos. Isso é particularmente importante para
profissionais de saúde e de educação, que têm muito medo de fazer essa pergunta.
Na maioria das vezes, para um potencial suicida, essa pode ser a oportunidade
de compartilhar seu desespero e abrir a chance para uma ajuda efetiva.
13. Concluindo, a premissa de “13 Reasons Why” é
excelente: discutir a crueldade cotidiana dos jovens (que me parece ser a mesma
crueldade dos humanos, embora em uma fase particularmente frágil da vida) e
como ela pode nos afetar de forma devastadora, em alguns casos. No entanto,
infelizmente, por negligência ou por pura arrogância, a série acaba fazendo provavelmente
um desserviço maior do que sua beneficência. A oportunidade perdida de se
discutir suicídio de uma forma cuidadosa se perdeu em meio ao hype,
infelizmente.
Parágrafo adicional motivado por alguns comentários
(considerem como a 14ª gravação, rs): 14. Gostaria de frisar que não defendo de
maneira alguma a censura ou a proibição da série, e muito menos que se evite o
debate das questões seríssimas do bullying, da violência de gênero e do
estupro. A questão é de, sem querer ofender quem amou a série, refletirmos
juntos se alguns cuidados poderiam ser tomados para evitar o prejuízo a pessoas
fragilizadas. Elas são a minoria da população, mas o impacto já foi medido e
mais de um estudo sobre o efeito Werther. A pergunta aqui é: será que o meu
entretenimento vale a vida de alguém? Será que ao recusar ao olhar os vacilos
da produção da série eu não estarei contribuindo de alguma forma para o
suicídio de alguma Hannah da vida real? Grato a todo mundo pelo interesse.
Fonte: Alagoas24horas