Escravas do crack: mulheres que trocam as próprias vidas pela droga


O número de mulheres que se prostituem pela pedra aumenta há quatro anos. Alicerces do tráfico, elas mantêm o seu vício e o do companheiro com o próprio corpo. Por trás dos cachimbos, suas histórias são de perdas e dor.

Fazia três dias que eu estava na rua, só fumando crack. Não sentia fome, então não comia. Carregava uma barriga de nove meses. A filha era do meu marido, com quem eu terminava e reatava na tentativa de retomar minha vida. Uma hora percebi que ela ia nascer. Voltei para casa da minha mãe. Pedia para entrar, mas ela não abria a porta. Não acreditava no que eu dizia, achava que eu estava louca de crack, que queria enganá-la, dar escândalo. E as dores aumentando. E ela se recusando a abrir a porta. Quando finalmente se convenceu a abrir, a cabeça da minha filha estava quase para fora. A menina nasceu no chão da cozinha, sem ajuda de ninguém. Minha mãe a aparou e chamou a polícia, que nos levou a um hospital. Isso faz dois anos e agora estou passando por tudo isso de novo. “É um filme de terror”.

Daniela*, 27 anos, enuncia os fatos com objetividade, quase frieza. É como se a narrativa não pertencesse à vida dela. Enquanto encaixa uma frase em outra, com português perfeito, deixa entrever sua instrução. Completou o ensino médio, fez cursos de informática, culinária, cabeleireira, sonhou em fazer faculdade de moda. Casou-se, teve três filhos, uma loja de materiais de informática, casa própria, carro do ano, renda familiar de mais de R$5 mil por mês. No rosto bonito, emoldurado pelo cabelo cuidadosamente despenteado, ao estilo black power, ela exibe a marca da sua história. Um buraco do tamanho de uma moeda de dez centavos no meio da testa, consequência de um tombo de moto sofrido quando estava drogada, e alguns dentes quebrados no sorriso branco e largo, por surra ou falta de higiene adequada, fazem com que se lembre todos os dias que ela abandonou tudo para ficar como crack.

A relação de Daniela com o crack começou há quatro anos, quando uma amiga ofereceu a ela uma pedra, numa festa. Até então, seu contato com drogas era meramente recreativo e controlado. Ela fumava maconha de vez em quando, sempre escondida, porque o marido não gostava.Um mês depois de provar crack, Daniela já estava compulsiva. Ficou agressiva com os filhos (o mais velho não chegava aos 10 anos de idade), distante do marido. Planejava desviar os R$80 semanais da feira para comprar pedra. Acabou saindo de casa. Foi perambular pelas ruas. Perdeu o controle sobre sua história. “A droga deforma o caráter”, afirma. Sem nunca ter tido passagem pela polícia, começou a roubar. “Mas eu era muito ruim nisso, ia acabar morrendo. Me prostituir foi a saída pra não depender de ninguém e conseguir a droga.” Ela, que tinha tido apenas quatro parceiros sexuais, contabiliza agora pelo menos 250 homens para quem vendeu o corpo nos últimos três anos. “Eu fazia de tudo, dependendo do cara e da minha fissura. Era dentro do carro, num canto escuro da rua, na casa do cara, no motel. Eu tinha um preço, mas no fim, o cara pagava R$5, R$10, ou pagava em pedra mesmo.” Grávida de cinco meses, de um menino, ela está há pouco mais de um mês abrigada no Amparo Maternal, um alojamento para mulheres em situação vulnerável conveniado à Prefeitura de São Paulo. Ali, ela fica longe da droga. “Mas ainda sinto o gosto da pedra na boca”, diz. Não existe qualquer remédio capaz de ajudá-la a se livrar do vício. Não é a primeira vez que Daniela tenta.

Ela já esteve internada em clínicas particulares, custeadas pela família, em duas ocasiões. Mas a cada nova recaída sua situação fica pior. A mãe não fala mais com ela, o marido, que hoje cuida da filha que nasceu na cozinha, a abandonou, as irmãs sentem vergonha dela, os filhos têm medo e saudade — o mais velho dorme abraçado à foto dela. Daniela chora ao rememorar almocinhos de domingo na casa da mãe, ou as festas de aniversário que ganhava na adolescência. É nesses momentos que parece se lembrar de quem é. “Quero jogar fora o rótulo de prostituta e noia. Eu sei que é difícil acreditar, é difícil as pessoas me perdoarem, mas agora quero fazer isso por mim mesma. Estou decidida que o próximo Natal vai ser diferente, longe da biqueira (boca de fumo).”

O ENCONTRO COM A DROGA
O destino de Daniela é um desafio não só para ela. A sociedade e o poder público não sabem como resolver o problema dela e de outras mulheres viciadas em crack. Ninguém consegue precisar quantas são dependentes da droga hoje. Mas sabe-se que o problema aumenta pela disparada do número de mulheres grávidas e doentes que apelam à rede pública de serviços.

Quando a droga desembarcou no Brasil, na década de 90, os dependentes costumavam ser jovens, negros e pobres. Os usuários não sobreviviam ao uso por mais de um ano. Morriam pelo efeito da droga ou do entorno violento. O tráfico era bastante limitado, a produção, artesanal. “Mas sabíamos que, tendo efeito mais poderoso do que o da cocaína, o crack não ficaria restrito a uma classe social mais baixa”, afirma a toxicologista Solange Nappo, que há 20 anos estuda a dinâmica do uso de crack no Brasil e publicou seus estudos no recém lançado "O Tratamento do Usuário de Crack" (Artmed). “Para o usuário, não existe ‘droga de rico’ e ‘droga de pobre’. Existe a droga que dá mais ou menos prazer.”

O consumo da pedra se expandiu nos anos 2000. Os traficantes temiam vender em larga escala uma droga que matava os clientes em pouco tempo. Além de perderem a clientela, as bocas de fumo ainda tinham que arcar com as dívidas que esses homens deixavam. O crime organizado percebeu que a lucratividade do crack aumentaria se os traficantes conseguissem alongar a sobrevida do usuário. A mulher se mostrou um bom negócio. “Incluí-las na cultura do crack foi uma estratégia genial para eles”, afirma Solange.

“Ela passou a ser a melhor cliente do tráfico, porque criou sua própria estratégia de obter dinheiro e de sustentar o vício dos homens, que agora vivem mais. Foi a pior coisa que poderia ter acontecido para a sociedade”.

A PROSTITUIÇÃO 
Assim como Daniela, outras mulheres perceberam rápido sua falta de destreza para o roubo. Elas não assustavam ninguém, não tinham força para machucar, não sabiam atirar. Quando faziam parte de uma quadrilha, invariavelmente, recebiam menos do que os homens. Nunca conseguiam comprar droga fiado. “Com a ajuda do traficante, que quase sempre é o primeiro cliente, elas descobriram uma carreira solo: se prostituir”, diz Solange. Nos últimos anos, ela acompanhou a trajetória de 76 usuárias — de analfabetas àquelas com curso superior, de miseráveis a abastadas. Descobriu que quase 90% delas vendiam o corpo para comprar crack. “Não importa a classe social, a religião, a origem, todas agem da mesma maneira. Ao se prostituir, sempre têm dinheiro para pagar o traficante. Se ela precisar de 30 homens num dia para pagar a dívida na boca, vai transar com todos.” Daniela confirma: “Lá na boca onde eu comprava, uma vez, me chamaram de vagabunda. Pedi para falar com o dono da boca. Ele veio e deu uma dura nos funcionários, disse que as mulheres são as melhores clientes, boas pagadoras e que eu nunca ficava devendo nada ali”.

A PROVEDORA
O dinheiro dos programas feitos pelas mulheres resolveu também o problema dos homens. O sorriso largo, o corpo esguio, os seios empinados sustentaram não só a fome de pedra de Amanda*, 22 anos, comoa do namorado dela, que a apresentou ao crack quando ela ainda era adolescente. Ele percebeu que na rua ela trazia muito mais dinheiro do que ele podia conseguir com os roubos que praticava. Passou a explorá-la sexualmente. Comprava roupas, eletrodomésticos com o dinheiro que Amanda ganhava dos clientes. Ela trocou de namorado, mas todos os demais companheiros se comportavam de maneira semelhante ao primeiro. Em sete anos de vício, o crack a levou a Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. “Eu ia aonde me pagavam mais pelo programa e a droga era melhor. Cheguei a transar com mais de mil homens”, diz Amanda. “Podia ter ganhado muito dinheiro, mas gastei tudo com droga para mim e para os outros.”

Solange Nappo afirma que por trás de uma mulher usuária de crack quase sempre há um homem, um companheiro. “Esse sujeito deixa de se expor, se resguarda, e a mulher passa à linha de frente no crack. É ela a provedora do casal”, diz. A relação pode descambar para a escravidão. Dalila*, 28 anos, tem marcas escuras, redondas, no braço direito. Grávida do então companheiro e se sentindo indisposta, um dia se recusou a estrangular a barriga para esconder o bebê e partir em busca de clientes. Ele a torturou.Apagou cigarros no braço dela até que a dor física a empurrasse para a rua. Dalila tinha virado sua fonte de renda e de crack. Quando perguntada sobre porque mantinha um relacionamento comum homem agressor, seus olhos encheram d’água. Não soube explicar. Ficou em silêncio. Quando falou, foi por um fio de voz. “Não sei, acho que foi porque, mal ou bem, ele era tudo o que eu tinha”, diz. Ela começou a usar na adolescência. A própria mãe, que traficava, ofereceu a ela. Casou-se, em uma tentativa de construir sua vida. Com o marido, teve dois filhos, hoje, com 16 e 8 anos. A família, no entanto, não foi capaz de mantê-la longe do crack. Hoje, os meninos moram com o pai e ela não os vê há quatro anos.

A CONDUTA E OS CLIENTES
Diferentemente das profissionais do sexo, as usuárias de crack não têm procedimentos de trabalho claros. Não há ponto fixo, nem horário de serviço. Trabalham sozinhas, na rua, drogadas e desesperadas para conseguir mais pedras. Não usam maquiagem ou roupas provocativas. “São extremamente pró-ativas, se jogam no colo dos homens e vão logo arrancando a roupa deles para acelerar o serviço e sair logo dali”, afirma Solange. Os clientes são escolhidos de acordo com dois critérios: a idade e a aparência. Elas preferem os mais velhos, que têm menos força para agredi-las, e os mais bem vestidos, porque provavelmente terão mais dinheiro. Em teoria, dizem cobrar preços que consideram justos. Na prática, seu poder de negociação é baixíssimo.

O preço combinado raramente é o pago. No discurso, abominam fazer sexo oral e anal. Na fissura, fazem o que der mais dinheiro. “Eu achava nojento fazer oral, mas fazia porque era mais rápido e já dava pra eu sair logo para fazer outro programa e fumar pedra”, diz Daniela. “Teve um cliente que me pagou R$500 para fazer 15 minutos de anal. Os homens têm esse fetiche e as mulheres deles não fazem. A grana era boa e eu estava tão drogada que nem senti nada. Ele pagou—e eu fumei tudo”, diz Amanda. Os clientes têm perfis tão variados quanto as usuárias. “Há pobretões e homens com dinheiro, carro, escolaridade alta. Nunca falta cliente porque são mulheres jovens, que fazem qualquer tipo de sexo por um preço muito baixo”, diz Solange Nappo.

“ACIDENTES DE TRABALHO” 
Se não conseguem garantir o pagamento pelos seus serviços, muito menos são capazes de se proteger contra doenças sexualmente transmissíveis. “Eu nunca usei camisinha”, diz Amanda. Os homens raramente fazem questão do uso de preservativo. Chegam a pagar um pouco mais por transas desprotegidas. Têm medo de broxar. Elas aceitam. Metade das mulheres pesquisadas por Solange tinha hepatite, cerca de 10% tinham o vírus HIV. Casos de sífilis também são frequentes. “Não é coincidência que hoje o maior número de casos de DST/AIDS esteja entre mulheres jovens e homens velhos. É esse exatamente o perfil das usuárias e seus clientes”, diz Solange. O diagnóstico é quase sempre acidental. O tratamento, errático.

“Descobri que tinha AIDS quando engravidei”, afirma Renata*, 31 anos. Aos sete meses de gestação, ela pesa 47 quilos. É uma figura desproporcional: a cabeça, de ossos aparentes, parece grande demais para um corpo esquálido, frágil. Antes de buscar um hospital, aos cinco meses de gestação, ela chegou a pesar 33 quilos. Sua sobrevivência e a do bebê são consideradas milagrosas pelos médicos. Renata chorou ao lembrar dos tempos de escola particular, das aulas de balé clássico e jazz que teve dos 2 aos 17 anos, da família que não vê desde julho do ano passado. Como a maioria das mulheres, ela entrou no crack por influência de um namorado, aos 24 anos. A mãe, empresária, chegou a ir buscá-la na cracolândia no ano passado. Mas Renata disse que ainda não era hora de sair dali. No entanto, no dia da entrevista, se disse convencida de que a hora chegara. “Não tenho nada meu, só a esperança e a força de vontade de sair do vício.” Dois dias depois da conversa, Renata fugiu do abrigo com R$12 no bolso. Sucumbiu mais uma vez ao crack.

Sem camisinhas nem método anticoncepcional, a gravidez é um destino tão certo quanto a próxima pedra que fumarão. “Os filhos são o maior acidente de trabalho delas”, diz Solange. De cada cinco dependentes de crack, quatro tiveram filhos ou fizeram um aborto. É uma prole indesejada, de pai desconhecido. A gravidez se dá em condições precárias. Das usuárias que chegam à maternidade estadual Leonor Mendes de Barros, a maior da zona leste de São Paulo, metade não fez pré-natal. E quase todas se drogaram durante a gravidez. “O crack é o Deus dessas mulheres”, afirma a assistente social Regina Dias de Barros. “A necessidade da droga suplanta o senso de maternidade que poderiam ter.” Em 2010, o hospital registrou seis casos em que as mães, dependentes químicas, rejeitaram ou abandonaram seus bebês. Em 2011, foram dez. Até março deste ano, já são três.

Regina presenciou alguns casos de mães que tentaram vender seus filhos. O preço que pretendiam cobrar variou de R$250 a R$22 mil. “Temos visto o problema aumentar nos últimos quatro anos. Essas mulheres vivem um drama. São mães, mas no fundo a droga fala mais alto”, afirma o médico obstetra Corintio Mariani Neto, diretor da maternidade. A fissura das mães é tanta que uma delas chegou a ser pega fumando crack dentro do banheiro do hospital, horas depois do parto. “Elas chegam aqui com a intenção de abortar ou de dar a criança assim que ela nasce”, afirma Jucelia Souza Gaspar, do Amparo Maternal. Para abortar, recorrem a métodos rudimentares, de baixo custo e alto risco, como beberagens ou a incisão de agulhas de tricô no útero. “Para elas, esses filhos equivalem a um estupro. Ela não conhece o pai, um homem que pagou R$5 pelo programa. Tudo o que quer é se livrar do filho”, afirma Solange.

Quando a criança nasce, o Estado a recolhe e as varas de Infância e Juventude a disponibilizam para adoção. Filhos de usuárias de crack nascem quase sempre prematuros e com baixo peso. São crianças irrequietas, nervosas, que choram a todo momento. “O bebê leva uma semana para eliminar o crack do organismo”, afirma Corintio. Ao contrário do que alardeia o senso comum, as crianças não nascem viciadas. Mas o crack provoca lesões neurológicas que acarretam problemas de aprendizagem. “Já se sabe que essas crianças têm grande dificuldade de fazer abstrações, de aprender matemática”, diz Corintio. Diante do prognóstico e do histórico familiar, costumam ser preteridas pelos casais que pretendem adotar.

A SAÍDA IMPROVÁVEL
Independentemente dos efeitos químicos da dependência, a situação de um homem e de uma mulher viciados em crack é completamente diferente. Para elas, a saída do vício e o retorno para a vida social é muito mais difícil. O tipo de transgressão moral que cometem é insuportável para a família, os empregadores, a sociedade. “O preconceito vem de todos os lados. Até mesmo de dentro das clínicas de tratamento, porque o homem usuário de crack perde tudo, menos o machismo”, diz Solange. “Para ela voltar, todo mundo terá que esquecer seu passado abjeto e aceitar os filhos que trazem a tiracolo. A maior parte das pessoas não está pronta para isso.” E as dependentes sabem disso.

Daniela diz que vai seguir em frente, mesmo que sua família não a queira mais. Dalila, a mulher que sofreu torturas do ex-companheiro, fraquejou. Se não pode ter ninguém, prefere ao menos ter o crack. Ela fugiu do abrigo em que estava, grávida de oito meses, antes do fechamento desta reportagem.

Fonte: Marie Claire por Mariana Sanches